terça-feira, 19 de outubro de 2010

COMO ESCOLHER, ENTRE DOIS DISCÍPULOS, UM APÓSTOLO

Então, enquanto aguardam a chegada do dom do céu que iria ensiná-los a ser testemunhas, ocorre aos discípulos, para preencher o silêncio, decidir por si mesmos o que é ser uma.
Ressentindo-se da lacuna deixada pela traição do Iscariotes, Pedro levanta-se e propõe (citando versos vagamente contraditórios do livro de Salmos) que o grupo reunido escolha um dos discípulos para unir-se aos onze apóstolos restantes, de modo a completar "o grupo dos doze".
Não se deixe enganar pela singeleza da narração: trata-se de ocasião tremendamente momentosa, que derramará profundas fissuras Novo Testamento adentro. Pedro não está aqui apenas advogando a consistência numérica ou tentando preservar de modo inocente uma tradição iniciada por Jesus. O que acontece é mais ambicioso e mais prenhe de conseqüências.
Pedro está, por iniciativa própria, definindo o que Jesus queria dizer – e com que estava falando – quando observou, antes da ascensão: "vocês receberão o poder do Espírito Santo e serão minhas testemunhas". Selecionar é interpretar, e Pedro pede que encontrem "um homem que acompanhou os doze durante todo o tempo em que Jesus conviveu com eles, a começar do batismo de João até o dia em que ele foi recebido no alto diante deles". Embora fosse provavelmente seletiva o bastante para eliminar a maior parte dos discipulos reunidos naquele dia, essa descrição não é definição de Pedro de uma testemunha, mas de um candidato a testemunha.
Quando dois nomes são indicados, o grupo vê-se obrigado a eliminar um – visto que na interpretação de Pedro os apóstolos divinamente apontados não poderão ser mais do que doze, conforme a configuração original. O ajuntamento solicita austeramente a predileção divina e realiza um sorteio, que consagra Matias e elimina da corrida Barsabás – não que nem um nem outro voltem a ser mencionados na história.
Com isso fica claro de antemão, diante do grupo, que a condição de testemunha de Cristo é algo a que nem todos – na verdade, muito longe disso – podem almejar. Pedro estabelece tanto os requerimentos formais da posição quanto os limites da sua circunscrição – e assim, num golpe só, transforma uma idéia que Jesus deixara no ar numa muito rígida instituição.
Ficou estabelecida, nesse único gesto, a tradição que viria a ser conhecida como autoridade apostólica: a noção de que o círculo mais interno de doze discípulos (justamente por terem estado mais perto de Jesus, no sentido literal) desfrutava de uma espécie de inalienável aval divino. O parecer desse grupo de apóstolos passava a ser considerado inquestionável tanto em termos administrativos quanto teológicos. Dito sem rodeios, Jesus mal havia esfriado no túmulo e os discípulos já haviam inventado uma hierarquia (com o passar dos tempo, interpretou-se que essa autoridade ia sendo transferida para os novos discípulos que viveram mais perto deste círculo inicial de discípulos, e assim por diante até o infinito. A autoridade espiritual reduzira-se a traços de uma radioatividade original que ia se esvaindo).
Jesus dissera que os discípulos aguardassem o poder do alto, mas Pedro, do alto de sua posição, já está distribuindo poder. O que redime a história é que o Espírito de Cristo, onde quer que esteja nesse momento, tem outras idéias.

Paulo Brabo
www.baciadasalmas.com



sábado, 16 de outubro de 2010

OSTRA FELIZ NÃO FAZ PÉROLA

Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que são as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos – seriam uma presa fácil dos predadores.
Para que isso não acontecesse a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostra felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostra felizes se riam dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão...” Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas aspereza, arestas e pontas, bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o seu trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava.
Um dia passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a sua rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para a sua casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras de repente seus dentes bateram numa objeto duro que estava dentro da ostra. Ele tomou-o em suas mãos e deu uma gargalhada de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele tomou a pérola e deu-a de presente para a sua esposa. Ela ficou muito feliz...”
Ostra feliz não faz pérolas. Isso vale para as ostras e vale para nós, seres humanos. As pessoas que se imaginam felizes simplesmente se dedicam a gozar a vida. E fazem bem. Mas as pessoas que sofrem, elas têm de produzir pérolas para poder viver. Assim é a vida dos artistas, dos educadores, dos profetas. Sofrimento que faz pérola não precisa ser sofrimento físico. Raramente é sofrimento físico. Na maioria das vezes são dores na alma.

Rubem Alves

sábado, 2 de outubro de 2010

O TEMPO E A ETERNIDADE

Trabalhar é cooperar com Deus para colocar ordem no caos. Na verdade, qualquer boa ação é um gesto solidário ao coração de Deus, que sempre desejou que esse mundo fosse um jardim. Dizem que quem não faz parte da solução, faz parte do problema, e, nesse caso, todo cristão deve agir como parte da solução para que o caos social, político, econômico, ético e ecológico seja revertido o máximo possível. Existe uma lógica para isso. Aliás, uma lógica que nem todo cristão alcança. Por exemplo, quem acredita que haverá um dia quando Jesus substituirá esse mundo por um novo e uma nova terra, não tem muita razão para trabalhar para que este mundo seja melhorado e transformado. Por que gastar tempo, recursos e dedicar a vida a manter e aperfeiçoar algo que vai acabar? Talvez, no mínimo para evitar que o caos inviabilize nossa vida nesse mundo ou acabe batendo à nossa porta: até quem pensa que esse mundo vai acabar mesmo não deseja ficar sem água, ter um filho vítima da violência urbana ou ser usurpado por um governo corrupto. Talvez para anunciar que o reino de Deus virá em breve, e que é bom que as pessoas comecem a se preparar para viver nele, que, aliás, já dá os seus sinais. De fato, cuidar do mundo enquanto vivemos nele e promover sinais históricos do reino de Deus na história são duas excelentes razões para que todo cristão se comprometa a cooperar com Deus para colocar ordem no caos.
Mas, consideremos uma terceira razão. E se o novo céu e a nova terra não forem "outro mundo", mas esse mundo, levado, por Deus, à sua plenitude? E se nosso trabalho e boas ações repercutirem na eternidade como matéria prima que Deus usa para a transformação desse mundo em novo céu e nova terra? Você já imaginou a possibilidade de que, assim como você vive para sempre, seu trabalho e suas boas obras também subsistam por toda a eternidade, e que os sinais históricos do reino de Deus não cairão no vazio do nada, mas continuarão testemunhando a graça e a glória de Deus para todo o sempre?
Jesus disse que as pessoas abençoadas por nós na história nos receberão na eternidade. Paulo, apóstolo, disse que no juízo final Deus colocaria fogo na casa que construímos na história e preservaria apenas o que fosse ouro, prata e pedras preciosas. João, apóstolo, disse que a Nova Jerusalém desce do céu: desce para onde? O "fim do mundo" no Novo Testamento é mais parecido com uma mudança de tempo ou era (este século e o vindouro) do que uma mudança de endereço ou lugar. Os rabinos acreditam que "as boas ações dos homens são as sementes que Deus usa para plantar as árvores do pa.
raíso". É possível que não estejam muito longe de ter razão.

Pr. Ed Rene Kivitz