quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O PRONUNCIAMENTO

Os quatro eram teólogos e estavam mortos, mas suas indignações não descansavam.
– Numa crise dessa magnitude – disse o primeiro – seria impreterível que Deus não se esquivasse, como tem feito com demasiada frequência, de um pronunciamento oficial. O ideal seria que ele lesse pessoalmente, em cadeia planetária, uma nota redigida por nós.
– Se ele continua se recusando a liberar os recursos celestiais para as operações de salvamento e reconstrução – disse o segundo – o absoluto mínimo que ele deveria fazer seria manifestar de forma inequívoca sua solidariedade pelas vítimas e familiares. Repito: o absoluto mínimo.
– O que também não pode ser contornado indefinidamente – exigiu um o terceiro, abrindo seu laptop e apontando para uma pasta impossivelmente repleta do seu Google Reader – é o caso do comportamento temerário de Pat Robertson e de seus asseclas. Esses andam dizendo, em nome de Deus mas evidentemente sem o seu endosso, que a calamidade é intervenção divina, castigo aplicado devido à impenitente simpatia dos atingidos pela ortodoxia errada. Seria conveniente que no seu pronunciamento Deus deixasse bem claro o seu distanciamento dessa posição.
– Pelo contrário – asseverou um quarto, como se já viesse aguardando esse momento. – Em seu pronunciamento Deus deverá endossar cada palavra de seu servo Pat Robertson, de modo a expor as mentiras dos liberais e confundi-los publicamente. Tendo em vista a posição oficial da divindade com relação à sua própria soberania, inaceitável é o que andam afirmando os teólogos liberais: que Deus nada tem a ver com o desastre em questão e que, como se não bastasse, nada poderia ter feito para evitá-lo. Desnecessário apontar que é essa a posição sem qualquer precedente escriturístico, sendo além de tudo heresia defendida há séculos por ateus desprovidos de qualquer mérito.
E, apesar das suas diferenças doutrinárias, nos dias que seguiram os teólogos conseguiram redigir uma nota contendo sete pontos essenciais sobre os quais os quatro concordavam, a respeito da origem do mal e da posição divina diante das grandes calamidades. Deixaram o documento na caixa de sugestões do céu, que não tem fundo, juntamente com uma carta de apresentação e um abaixo-assinado com poucas assinaturas, mas de prestígio.
A resposta demorou meses a vir, e chegou endossada por um número impossivelmente abundante de selos, rubricas e carimbos, cada um atestando a passagem do processo por uma repartição celeste.
“O último pronunciamento oficial da divindade foi abraçar uma plena humanidade e morrer, e no intervalo entre uma coisa outra investir seus esforços em mitigar os sofrimentos dos homens e reparar as injustiças a que se submetem mutuamente, tendo deixado instrução para que seus seguidores vivessem e morressem dessa mesma forma. Não existe qualquer previsão para uma revisão deste pronunciamento, e a divindade não encontra-se disponível para esclarecimentos adicionais. A primeira vez em que foi visto publicamente Deus estava com as mãos sujas de barro, e na sua última aparição pública ostentava as cicatrizes de sua paixão pelos seres humanos. A administração do céu não reconhece outro lugar onde Deus possa ser encontrado, ou outra maneira pela qual possa ser reconhecido”.
– Lamentáveis essas respostas automáticas – disseram os teólogos uns aos outros, e passaram o resto da tarde lamentando a burocracia celestial.

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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

MATURIDADE EM CRISTO

O caminho e a forma da maturidade cristã nunca foi muito claro, pelo menos para mim. Durante muito tempo, ser um cristão maduro significava ser uma pessoa moralmente correta e de valores elevados e nobres. Esta forma estóica de compreender a vida cristã teve grande influência nos anos 60 e 70, quando a espiritualidade era associada a um modelo de moral cristã. Naquele tempo,ser um crente maduro significava ser uma pessoa casta, honesta, íntegra, comprometida, responsável com as próprias obrigações e com certo grau de heroísmo em suas ações e renúncias. Reconheço que são valores bons e altruístas e que representam, de alguma forma, o testemunho de um cristão; mas não me parece que ser um cristão maduro seja apenas isso. Uma outra forma de identificar um crente maduro tem sido pela sua capacidade de articular bem a teologia e a doutrina cristã, principalmente se for de uma corrente mais conservadora. O zelo pela Palavra de Deus, a firmeza das convicções, a segurança na proclamação e defesa da fé evangélica e a lealdade para com confissões históricas sempre foi considerado um sinal de maturidade. E a maturidade cristã passa, de alguma forma, por este caminho; mas não acredito que ela se restrinja somente a isso, nem mesmo numa combinação com o anterior.
Alguns afirmam que a verdadeira maturidade cristã acontece quando tudo se transforma em experiências concretas e pessoais – por meio do poder do Espírito Santo, a moral deixa de ser um simples moralismo para se transformar numa manifestação viva do poder de Deus. Assim, pecadores são transformados em santos e o conhecimento, zelo e defesa da verdade evangélica deixam de ser realidades intelectuais e se transformam em testemunho vivo e poderoso da graça de Deus. Concordo. Mas ainda penso que a questão vai um pouco além.
Uma outra forma de considerar a maturidade cristã é vinculando-a com um tipo de “bem estar” emocional. A influência da psicologia moderna na experiência cristã é um fator importante nessa nova compreensão do processo de amadurecimento cristão. Ser uma pessoa emocionalmente bem resolvida, realizada, que não carrega sentimentos de culpa, que goza de relacionamentos mais “profundos” e superou as limitações dos modelos moralistas das estruturas religiosas opressoras, é sinônimo de maturidade. De certa forma há uma contribuição positiva nisso tudo, mas que apenas tange o propósito divino.
Em sua carta aos filipenses, Paulo nos apresenta um caminho para a maturidade espiritual e cristã. Do ponto de vista moral e legal, Paulo poderia ser considerado uma pessoa madura, pois cumpria os requisitos da lei e andava de acordo com os padrões morais da sua cultura e religião. Era também zeloso, responsável e coerente para com suas convicções e seus compromissos religiosos. Ele mesmo se afirmava “circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu; quanto ao zelo, perseguidor da Igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível”.
O que chama a atenção é que, para Paulo, tudo aquilo que temos considerado fundamental para o caminho da santidade e do amadurecimento era considerado como “esterco” diante do que é superior e sublime. Para o apóstolo, o que poderia representar, mesmo que de longe, alguma forma de esforço pessoal que pudesse trazer um certo orgulho moral ou espiritual, era considerado como “perda” por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus. Logo, o caminho da santidade e da maturidade não é o caminho do esforço moral, do legalismo ou mesmo de um zelo que nos proporciona status elevado, colocando-nos numa posição superior, inflando egos frustrados e promovendo uma forma espiritualidade auto-indulgente e auto-suficiente.
Neste caminho, Paulo reconhecia duas realidades. Primeiro, precisava deixar para trás tudo aquilo que o impedia de avançar. O autor de Hebreus também nos fala sobre isso quando diz: “Desembaraçando-nos de todo o peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta” (capítulo 12:1). O passado cria embaraços, laços e amarras que nos impedem de caminhar. Muitos cristãos vivem como se arrastassem bolas de chumbo amarradas aos pés. São memórias de abusos, rejeições, abandonos, decisões malfeitas, escolhas erradas, frustrações, desilusões, mágoas e tantos outros pesos e pecados que permanecem conosco como fantasmas. Paulo não propõe que estas memórias e experiências sejam negadas ou varridas para debaixo do tapete. Ele sugere que sejam deixadas para trás. Ou seja, elas não podem determinar o presente ou o futuro – precisam ser enfrentadas e tratadas pela cruz de Cristo.
A segunda realidade que Paulo reconhece é a necessidade de prosseguir no caminho tendo diante dos olhos “o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” ou simplesmente “o autor e consumador da fé – Jesus”. O crescimento e amadurecimento espiritual não é fruto de algum ajuste psicológico ou sociológico, de uma boa formação teológica ou domínio das doutrinas bíblicas; muito menos um volume de experiências místicas na bagagem espiritual. Amadurecer implica caminhar perseverantemente em direção a Cristo, de tal forma que sua vida gloriosa seja vivida por nós pelo poder do Espírito Santo.
Quando Paulo afirma “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”, ele não está afirmando uma espécie de fusão de vidas ou alguma forma de anulação de sua personalidade. O que ele declara aqui é que, pelo poder do Espírito Santo, a comunhão com o Senhor é possível no sentido de que ele torna nosso tudo aquilo que é dele em sua humanidade encarnada. É por isso que Paulo nos diz que, em seu caminho em direção a santidade e ao amadurecimento cristão, ele busca conformar-se com Cristo em sua vida, sofrimento, missão e ressurreição.
Não resta dúvida que os valores morais, o conhecimento teológico ou a estabilidade emocional sejam marcos importantes no testemunho cristão, mas não devemos confundir isto com a sublimidade do conhecimento de Cristo.

Pr. Ricardo Barbosa de Souza
www.eclesia.com.br

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

POR DIAS MELHORES

As novas gerações sempre foram alvos de esperança de dias melhores. É natural desejar que, entre os jovens, surjam muitos que irão indignar-se com situações difíceis e liderar movimentos de mudança.
Apesar de não estar entre eles, necessariamente, a melhor solução, é o encontro do antigo com o novo que amplia os horizontes e traz outras possibilidades. E são eles que podem dar nova direção às diversas áreas da sociedade.
No entanto, a pós-modernidade é marcada por uma juventude bem diferente das anteriores. Ela não é mais inconformada com o presente e nem apresenta a preocupação em construir um futuro melhor. Não está interessada com o legado que irá deixar, com a história que irá edificar nem com as mudanças que irá produzir.
Não, os jovens dos dias atuais são marcados pela experiência sensorial, interessados no sentimento que irão provar e não têm perspectiva de futuro para eles mesmos.
Isso se reflete também na vida cristã, pois eles também tendem, na vida religiosa, a buscar apenas as sensações da próxima vivência e a não se preocupar com o fundamento e a essência do Cristianismo.
O grande desafio da igreja é resistir à tentação de se adaptar a esse momento. Não devemos, ou melhor, não podemos nos preocupar em oferecer a essa geração um modelo religioso que preencha às suas necessidades. Isso só iria produzir jovens mais vazios e imaturos, sem compromisso e sem convicção. E, como consequência, estaria sendo incentivada uma igreja sem identidade e marcada pela vulnerabilidade.
Ao contrário, trata-se de uma oportunidade preciosa, pois a falta de sonhos e objetivos concretos desequilibra a juventude, podendo produzir novos rumos e expectativas por dias melhores. Temos a obrigação de continuar apresentando-lhe Jesus como uma experiência real e a única solução para as suas angústias, desesperanças e anseios intermináveis por novas sensações.

Rosane Itaborai Moreira

domingo, 2 de janeiro de 2011

SIMPLICIDADE E PERMANÊNCIA

De vez em quando gosto de reler “Cartas de um Diabo a seu Aprendiz”, de C. S. Lewis. Sua habilidade em perscrutar os labirintos da tentação me impressionam. Ele nos ajuda a reconhecer nossa enorme ingenuidade e a profunda sagacidade do inimigo.
Em uma dessas cartas, o Diabo reconhece que o verdadeiro problema dos cristãos é que eles são “simplesmente” cristãos. O laço que os une é a vida comum que eles têm em Cristo. Ele então aconselha seu sobrinho: “O que nós desejamos, se não houver mesmo jeito e os homens tiverem de tornar-se cristãos, é mantê-los num estado de espírito que eu chamo de cristianismo e alguma outra coisa [...]. Substitua a fé em si por alguma moda com colorido cristão. Faça com que tenham horror à Mesma Coisa de Sempre”.
A “mesma coisa de sempre” nos deixa entediados. Ser “simplesmente” cristão, para muitos, não é suficiente. Precisamos de coisas novas. Sempre. Modelos novos de igreja, um jeito diferente de cantar, formas inovadoras de culto, estratégias sofisticadas de crescimento, e por aí vai. Somos movidos pelas novidades, não pela profundidade. Nosso interesse está na variedade, não na densidade.
O reverendo A. W. Tozer, num artigo intitulado “A velha e a nova cruz”, comenta o mesmo fenômeno: “Uma nova filosofia brotou dessa nova cruz com respeito à vida cristã, e dessa nova filosofia surgiu uma nova técnica evangélica -- um novo tipo de reunião e uma nova espécie de pregação. Esse novo evangelismo emprega a mesma linguagem que o velho, mas o seu conteúdo não é o mesmo e sua ênfase difere da anterior”.
O Diabo, na carta ao seu sobrinho aprendiz, diz: “O horror pela mesma coisa de sempre é uma das mais preciosas paixões que incutimos no coração humano -- uma fonte infinita de conselhos estúpidos, de infidelidade conjugal e de inconstâncias na amizade”. A lista poderia se estender, mas o que se encontra por trás desse “horror pela mesma coisa de sempre” é a grande atração pelo novo seguida de uma profunda distração pelo essencial. O que a novidade faz é direcionar nossa atenção para outras preocupações, dando mais valor aos meios e não aos fins.
A formação espiritual cristã sempre requereu, basicamente, obediência a Cristo no seu chamado a proclamar o evangelho, fazer discípulos, integrá-los numa comunidade trinitária e ensiná-los a guardar a sua palavra. Ensiná-los a se comprometerem com o serviço como expressão de amor para com o próximo e com o cultivo e a prática de disciplinas espirituais como oração, jejum, arrependimento, confissão, leitura e meditação nas Escrituras e contemplação.
Não importa o quanto nossas igrejas e ministérios sejam sofisticados. Não importa o volume de novidades e tecnologias que oferecemos. Se no final não encontrarmos as mesmas coisas de sempre, significa que nos perdemos com o meio e não alcançamos o fim.
Existem dois aspectos que considero fundamentais na experiência espiritual cristã: simplicidade e permanência. Quando perguntaram para Jesus como o reino de Deus viria, ele respondeu afirmando o seu caráter discreto. Não viria com grande estardalhaço. Se estabeleceria dentro daqueles que o confessam como Senhor e Rei. Jesus apresenta um evangelho que transforma de dentro para fora. O que o vaso contém é infinitamente maior e mais valioso que o vaso. Ele cresce como uma pequena semente de mostarda. A simplicidade está na natureza própria do evangelho.
A permanência define o caráter pessoal e relacional da fé. Permanecer em Cristo é permanecer ligado como galho na videira. É somente nessa permanência que recebemos de Cristo sua vida e a transmitimos aos outros. Permanecer é mais do que conhecer -- é manter-se em constante e dinâmico relacionamento. As novidades não transformam o caráter; a permanência, sim. Para C. S. Lewis, a maturidade é algo que “todos alcançam na velocidade de sessenta minutos por hora, independentemente do que façam e de quem sejam”.

Pr Ricardo Barbosa de Sousa

www.ultimato.com.br