sábado, 28 de janeiro de 2012

ATRAVESSANDO O SOFRIMENTO


Sofrimento é o intervalo possível e inevitável entre a aniquilação merecida e a redenção graciosa.
Tudo o que existe, existe em Deus (At 17.28), quando rompemos com Deus perdemos o local da existência.
Nós deveríamos ter deixado de existir. Deus, porém, não o permitiu, manteve-nos.
Para isso arcou com o custo que a justiça impunha: esvaziou-se no Deus Filho. E foi o primeiro movimento da história da redenção, antes da criação de qualquer criatura. (1Pe 1.18-20)
O esvaziamento é a morte de um Deus: não perde a sua natureza, mas abre mão de suas prerrogativas divinas. (Fil 2.5-8)
A cruz, na história humana, é a manifestação, possível, desse esvaziamento que, satisfazendo o princípio da justiça, permitiu que a Trindade atuasse por graça.
O cumprimento do principio de justiça não poderia ser relativizado, sob pena de perda de credibilidade por parte de Deus. (Ez 18.20)
Todo mau uso da liberdade impõe uma consequência. Para que a criação não desaparecesse o Deus Filho se esvaziou.
Quando, ao romper com Deus, não fomos aniquilados, nos tornamos malvados, porque ao dizer não a Deus, dissemos não a tudo o que Deus disse de nós: que seríamos sua imagem e semelhança. O mal que, antes, só podia ser pensado como tese, agora tinha manifestação histórica.
Se a maldade, porém, se tornasse o tom determinante de nossa história, nossa sobrevivência estaria ameaçada da mesma forma, há um limite para a expansão do mal (Gn 6.5-7; 15.16).
Deus, então, por graça, empresta as suas qualidades a nós, o que garante sobrevida com qualidade mínima, para que possamos sobreviver na nova história, enquanto Deus faz o que tem de ser feito para salvar a nossa história e a nós, nela. (At 14.17)
E nos tornamos paradoxos (Rm 7), carregamos o bem e o mal em nós. E o paradoxo é estado de sofrimento.
Os opostos deveriam se aniquilar, mas, a graça divina não o permite.
O esvaziamento do Deus Filho, num primeiro momento, pela deflagração da graça, permitiu o desaceleramento do caos, estabelecendo o paradoxo em toda a criação. E o paradoxo é estado de sofrimento.
Deus, aliás, criou um mundo pronto para o paradoxo, onde convivem o bem e o mal, o dia e a noite, a vida e a morte. Um mundo cuja estabilidade está, portanto, na ação graciosa da Trindade. (Hb 1.3)
Deus criou um mundo temporário para o intervalo do sofrimento, que é, por definição, temporário.
Um mundo temporário, porque o mundo definitivo só tem bem, vida, luz e bem-aventurança. (Ap 21.1; 22.1-5)
Deus, de várias formas falou pelos pais e pelos profetas e, finalmente, pelo Filho, ensinando-nos a conviver nesse e com esse intervalo, de modo a torná-lo menos insuportável. A chave é o amor como moto de tudo e para todos os atos.
A graça, com que Deus socorre a todas as criaturas, desacelera a volta para o caos, para onde tudo teria de ir imediatamente após a ruptura humana. O aniquilamento dá lugar ao sofrimento, resultado da ação restauradora dessa graça, que estabelece o paradoxo pela infusão de vida num ambiente que deveria ser só morte, se a morte pudesse ser, e que, também, torna possível passar por esse intervalo: o sofrimento.
O esvaziamento do Deus Filho, que, num primeiro momento, permitiu o desaceleramento do caos, tornou o caos uma impossibilidade.
Na ressurreição, o Filho do Homem teve comprovada a eficácia do esvaziamento do Deus Filho. A ressurreição é a comprovação da vitória sobre o aniquilamento e o caos. (1 Co 15.54,55)
Na ascensão o Filho de Deus retomou (o que nunca perdera na essência) sua condição de Deus Filho. (Jo 17.4,5)
Tudo estava consumado e o fim da história é a Vida!
É nessa certeza que atravessamos o intervalo, que é estado inevitável de sofrimento; inevitável, mas, administrável, e que pode ter a intensidade diminuída pelo amor. Portanto, amar é nosso desafio e missão.

Ariovaldo Ramos

ariovaldoramosblog.blogspot.com

sábado, 7 de janeiro de 2012

DISCÍPULOS DO AMOR

O tema do amor cristão me parece um desafio em dois andares: o da ortodoxia, em cima, e o da “ortopraxia”, no térreo.
No andar de cima, encontro o ensinamento de Jesus e de seus apóstolos, inspiradores e desafiadores. Nesse âmbito, ouço Jesus dizer que seremos reconhecidos como seus discípulos se tivermos amor uns pelos outros (Jo 13.35); ouço Paulo orar por nós, para que, pela fé, tenhamos raízes e alicerces no amor (Ef 3.17); ou então João, a dizer que aquele que não ama não sabe nada de Deus (1Jo 4).
No andar de baixo, encontro o desafio da prática desse mandamento de Jesus, acrescido do entendimento apostólico de que fazer discípulos significa também ensinar a amar (Mt 28.19). Nas palavras de René Padilla: “Efetivamente, a experiência do amor de Cristo, que segundo Paulo ‘excede todo entendimento’, só é possível ‘com todos os santos’. Só é possível na igreja, ‘a família de Deus’, onde os discípulos aprendem a amar...”.
O discípulo de Cristo precisa conhecer o que seu mestre espera dele. Para isso, observa as palavras e atitudes do mestre. Considera o que os apóstolos ensinaram e como eles vivenciaram o ensino e o exemplo que Cristo lhes deu. Por outro lado, o “discípulo do amor” precisa manifestar em sua vida comunitária esse sinal, essa marca da nova vida que recebeu do Espírito Santo.
Eis o desafio dialético: precisamos aprender e ensinar a amar -- nos dois andares! Não basta abrir a Bíblia e aprender sobre o amor. O ensino fica incompleto. É preciso coerência com o térreo, com a “ortopraxia”: a prática correta; uma escada ligando os dois andares.
Surge, assim, a questão inevitável: como se aprende a amar? Minha resposta: no andar de cima, obedecendo; ou seja, sem considerar as emoções (se gosta ou não). Apenas amando: abençoando, fazendo o bem, permitindo o bem, ensejando o bem a amigos e a inimigos. Já no andar de baixo, aprende-se a amar “sendo amado”. Sim, é uma dimensão passiva da pedagogia divina. É aqui, me parece, que a experiência do amor de Cristo “excede todo entendimento”. É onde aprendo sobre a graça e o afeto, sobre a segurança que o amor de Deus traz, sobre a incrível sensação de ser amado, apesar de ser conhecido como realmente sou.
Que conflito! Meu maior “sonho” é ao mesmo tempo meu maior “temor: ser conhecido”. Na transparência (que advém da proximidade e que permite a comunhão) posso encontrar descanso e paz. Entretanto, posso encontrar, também, rejeição. O temor é que, quando descobrirem meus defeitos, passem a me odiar.
Porém, João nos exorta a, pela fé, vencermos nossos medos e aprendermos, com sabedoria e oração, a “andar na luz”. As palavras que ele usa para “luz” são: verdade, confissão, perdão e purificação (1Jo 1.1-10).
-- Transparência? Confessar tudo? Na minha igreja? Me colocam na rua! Talvez nos falte um pouco do andar de baixo.
Procuram-se “mestres do amor”: gente que aprendeu a amar porque foi muito amada -- apesar do seu pecado. Incondicionalmente, portanto. Oferecem-se “discípulos do amor”: gente desconfiada, que não crê mais nisso -- mas que está disposta a tentar uma última vez.


Rubem Amorese


www.ultimato.com.br

domingo, 1 de janeiro de 2012

A LUTA DE JESUS PELA INDEPEDÊNCIA: A SUA


O propósito destas páginas é demonstrar que as instruções morais de Jesus não são complexas em suas exigências, mas requerem simplesmente de nós a única coisa que pode conferir à vontade inteireza de propósito, e produzir em nós uma atitude de firmeza e independência intelectual.
Com lamentável frequência as palavras de Jesus são usadas pelos cristãos não como meios para a obtenção dessa vontade livre e independente, mas como regulamentos de autoridade inquestionável porque procedem da boca de Jesus. Essa aplicação das suas palavras, no entanto, representa uma efetiva insubordinação a elas.
Não podemos deixar de lado o fato de que Jesus esforçou-se para conduzir os que uniram-se a ele a uma postura que ia além desse tipo de obediência indolente. Compreender corretamente esse aspecto da sua obra é ver a consciência moral do ser humano encontrando nEle sua consumação final; e, se formos incapazes de enxergar isso, não poderemos experimentar a Pessoa de Jesus ou, em qualquer sentido real, o poder da redenção.
Só conseguiremos apreender essa realidade quando as palavras de Jesus nos revelarem o espírito que nos capacita a adquirir independência no homem interior – ou seja, verdadeira vida. A não ser que encontremos em Jesus este caminho para a disciplina e a liberdade interiores, permanecerá para nós impossível experimentar sua Pessoa na qualidade de caminho que conduz ao Pai. Sem completa reverência é impossível que haja completa confiança; porém o acesso a Deus que é nosso através de Jesus consiste numa absoluta confiança na pessoa dele, confiança que representa a libertação dos horrores do isolamento espiritual. A não ser que tenhamos experimentado isso podemos, na verdade, prosseguir falando sobre o drama da redenção como algo realizado eras atrás, mas não teremos qualquer direito de dizer que ele é o Redentor cujo poder experimentamos agora.



Wilhelm Herrmann
em seu prefácio a Ensaios sobre o Evangelho Social, 1907

www.baciadasalmas.com.br