domingo, 15 de setembro de 2013

AMA E FAZ O QUE QUISERES

Os debates morais têm em suas entrelinhas a discussão a respeito das fontes de autoridade para a normatização do que é aceitável e permitido, o que deve ser coibido e proibido. Existem várias fontes normativas: as escolas filosóficas, a ciência, a racionalidade (modernidade) e a subjetividade (pós modernidade) humanas, a antropologia e as construções culturais, são exemplos de critérios que ao longo do tempo vêm sendo usados para a definição do certo e errado. Mas não há dúvidas de que os textos sagrados são a fonte por excelência para um grande contingente de pessoas, notadamente as inseridas nas tradições religiosas: a Torah para os judeus, a Bíblia para os cristãos, o Corão para os islâmicos.
A Bíblia não pode ser lida de maneira literal e estática. Suas orientações éticas devem ser atualizadas. É necessário identificar o momento histórico e os contextos social e cultural em que foram pronunciados, buscar a inteligência das orientações, e verificar como se aplicam em diferentes períodos e circunstâncias. 
Os conflitos entre as normatizações bíblicas e os dilemas éticos do mundo contemporâneo são cada vez mais complexos. O herói bíblico Josué, sucessor de Moisés e comandante responsável por conduzir o exército de Israel na posse da terra prometida, seria hoje condenado como criminoso de guerra acusado de crime contra a humanidade e genocídio, nos termos dos acordos internacionais, como a Convenção de Genebra e o Estatuto de Roma, que regem a Corte Penal Internacional, o Tribunal de Haya.
Caso o encontro entre o apóstolo Paulo e Onésimo ocorresse hoje, Filemon seria denunciado no Ministério Público e acusado do crime de exploração de trabalho escravo. Também seria impensável hoje em dia a condição da mulher nos tempos bíblicos, como por exemplo a situação em que Ló oferece suas duas filhas virgens para que sejam violentadas pela multidão e assim evitar evitar o assassinato xenófobo de hóspedes estrangeiros.
As leis reguladoras do divórcio também sofreram consideráveis ajustes ao longo dos tempos. Previsto na Torah, a Lei de Moisés, o divórcio era compreendido pela comunidade de Israel como um direito da mulher repudiada. O repúdio era o ato de rompimento do vínculo conjugal feito pelo homem insatisfeito com sua mulher. Ao oferecer carta de divórcio, o homem abria mão da posse da mulher com quem esteve casado – na sociedade patriarcal judaica a mulher era propriedade econômica do pai e depois do marido. A mulher repudiada sem carta de divórcio permanecia vinculada ao ex-marido (que sem a carat de divórcio não era considerado ex), e impedida de casar-se novamente. A carta de divórcio, portanto, foi uma orientação reparadora de uma injustiça e um ato de proteção da mulher vitimada pelos caprichos masculinos. Hoje, entretanto, na maioria das igrejas evangélicas ainda existe a crença de que “Deus odeia o divórcio”, quando na verdade “Deus odeio o repúdio que não se faz acompanhar da carta de divórcio”. Jesus era a favor do divórcio, uma vez que constava da Lei de Moisés. Apenas não era favorável ao divórcio “em qualquer situação”, e nesse caso se alinhava à visão conservadora do rabino Shammai, em detrimento da postura mais flexível do rabino Hilel. A sociedade contemporânea, chamada secular, por sua vez, sequer compreende o fato de que divórcio e novo casamento sejam tratados como tabús nas comunidades religiosas.
Estes poucos exemplos servem para demonstrar as razões da suspeita de que a Bíblia seja um livro desatualizado em termos de normatizações para a vida em sociedade. É necessário compreender, entretanto, que Jesus ressignifica a Lei de Moisés e eleva a régua do debate a respeito do certo e errado. Manter o debate nas categorias da Lei implica necessariamente a armadilha do farisaísmo do primeiro século: julgar a qualidade dos homens com base em comportamentos morais.
Sendo verdadeiro que a moral é o conjunto de práticas aceitas e incentivadas e reprovadas e coibidas de uma sociedade, a ética pode ser entendida como os critérios através dos quais são feitos os julgamentos morais. Por exemplo, a escravidão é inadmissível (costume/moral) pois todos os homens são iguais porque criados à imago Dei (princípio ético). A lei, por sua vez, é a regulamentação objetiva e formal da moral. Nesse caso, a escravidão não é apenas um costume (moral) inaceitável, justificado por um princípio (ética), como também crime (lei). 
Jesus, entretanto, vai além da lógica ética-moral-lei. Sua proposta para o discernimento do certo e errado extrapola os princípios da tradição  da filosofia e da teologia, confronta todas as práticas aceitas socialmente e exige a completa reinterpretação e ressignificação da senso comum social. Por essa razão cura no sábado, deixa de lavar as mãos antes das refeições, toca os impuros e se deixa tocar por eles, vive rodeado de pessoas de reputação duvidosa, impede a adúltera de ser apedrejada, e estabelece comunhão com estrangeiros, dentre outras atitudes escandalosas para sua sociedade e sua época, mas elogiadas nos dias de hoje como superação de fundamentalismos, preconceitos e intolerâncias. 
Para encontrar o caminho a seguir nas encruzilhadas dos dilemas éticos, morais e legais, Jesus propõe o amor. A vida humana é complexa demais para que todas as questões sejam resolvidas através de regras e leis. O ser humano é valioso demais para que seja tratado de acordo com a letra fria das leis e da impessoalidade das regras. A ética, a moral, e a lei devem servir de referência para as decisões e relações. Mas toda vez que tiverem a última palavra, a lógica de Jesus estará invertida, como se “o homem tivesse sido criado para o sábado”. Diante de um ser humano em conflito a respeito do certo e do errado, vale o amor. Eis o desafio aos cristãos contemporâneos: viver a proposta de Jesus, interpretada por Santo Agostinho: “ama e faz o que quiseres”. 

Pr. Ed René KIvitz
Revista Ultimato, Edição 343