
O estudo da História da Teologia consiste em toda reflexão humana como esforço em aprofundar e compreender melhor as manifestações de Deus ao homem ao longo da história. Ainda que o objetivo seja a revelação de Deus aos homens transmitida pelas Escrituras, experiências e tradição oral, esta reflexão humana não se desenvolve separada do contexto histórico e sociocultural através dos séculos até nossos dias. Compreende-se então que, apesar de Deus ser imutável, o pensamento teológico experimenta um desenvolvimento, uma evolução quando analisado cronológica e sistematicamente.
Nosso conhecimento de Deus inicia-se a partir da Criação, intentando um relacionamento íntimo e direto com o homem criado à Sua imagem e semelhança. O homem desobedece a Deus e o castigo divino é estendido a toda a humanidade, trazendo conseqüências inclusive à natureza. A partir daí, observam-se as diferentes formas de manifestação de Deus para que este relacionamento fosse restaurado.
Com o pecado presente em toda a humanidade, Deus acha graça em um homem, Noé, que é escolhido para, juntamente com sua família e alguns animais, entrar na arca, sendo todos os demais homens e animais objetos da ira e da condenação de Deus. Vê-se, então, o juízo e a graça divinos serem exercidos.
Mas Deus tem um propósito e Ele intervem na História para que o mesmo se cumpra.
No período Patriarcal, Deus chama um homem, Abraão, para ser pai de uma grande nação. O chamado foi direto e individual e a resposta de Abraão dependia da fé e da obediência a esta manifestação de Deus. Nesse período, Deus se revelou ao homem diretamente e, pela fé, ou seja, pela capacidade de ver Deus, o homem responde com a obediência. Estabelece-se, assim, o processo do desenvolvimento histórico do relacionamento de Deus com o homem.
No período da Lei, a revelação de Deus ao homem é formalizada através da Lei dada a Moisés. Deus se manifesta a Moisés mostrando Sua glória e poder e dando todos os estatutos a serem cumpridos pelo povo para que haja bênção. Os atos de Deus dependeriam, agora, da obediência à Lei. A Lei mostrava o pecado, e este separa o homem de Deus. Deveria haver arrependimento e conserto. Para aplacar a ira divina, o contexto da Lei também fornecia alternativas simbólicas para o homem livrar-se do pecado e reaproximar-se de Deus: sacrifícios de sangue, sacerdócio, festas e consagrações e até mesmo o tabernáculo, símbolo de Deus no meio do povo. Nota-se, nesse período, um grande número de ações de Deus no meio do povo mostrando sua justiça: a morte dos filhos de Arão, a lepra recaída sobre Miriã, a peregrinação do povo pelo deserto até que a primeira geração morresse devido à incredulidade e até mesmo o castigo dado a Moisés, que não entrou na Terra Prometida por desobediência. Deus, nesse período, manifestou-se não só por atos de justiça e condenação, mas também pelo cuidado com o povo: a nuvem de dia, a coluna de fogo à noite, a passagem pelo Mar Vermelho, o maná, entre tantos outros.
Ao se instalar em Canaã, Deus continua se manifestando com poder e cuidado com o povo e, principalmente, com o Seu comprometimento em cumprir a Sua Palavra. O episódio do pecado de Acã mostra a santidade de Deus e como a desobediência poderia trazer maldição, ou seja, o que é santificado por Deus torna-se anátema para o homem que usurpar, fazendo uso indevido do que é santo. Além da morte conturbada de Acã, o pecado oculto leva a uma derrota vergonhosa de Israel na Batalha de Ai. Novamente, é visto com clareza o exercício do juízo divino.
Em Juízes, com a falta de liderança política e espiritual, a religião torna-se com forma (sacrifícios, sacerdócio, festas, etc.), mas sem essência (arrependimento, santidade, comunhão, revelação, etc.), gerando um ciclo que, quando havia arrependimento do povo pela apostasia, Deus se manifestava através de um juiz escolhido por Ele para tirar o povo da opressão dos estrangeiros e legislar no meio deste povo. A manifestação de Deus dependia da conversão da nação dos seus maus caminhos.
Samuel inaugura o Período Profético, que pode ser visto como uma tentativa de Deus Dmostrando que a essência é mais importante que a forma. É a reestruturação religiosa baseada no aspecto básico e essencial da Lei: o arrependimento. O ponto culminante dessa mudança é sentenciado pelo próprio Deus em I Sm.16.7b: “O homem vê o exterior, porém, o Senhor, o coração”. Todos os demais profetas que viriam após Samuel experimentam essa intimidade e compromisso com Deus, sendo usados como canal para a revelação da vontade de Deus em relação à nação de Israel. Eram responsáveis por falar ao povo aquilo que Deus tinha a dizer. Através de um homem escolhido e separado, Deus se revela ao Seu povo, não só pela palavra proferida, como também na realização de atos miraculosos comprovando a presença de Deus na vida daquele homem.
No período da Monarquia, pode-se ver, com o rei Davi, a revelação de Deus ao homem de uma forma completa. Ele personifica o ser humano em ambigüidade cujo ser interior anseia por um relacionamento íntimo com Deus; retrata, também, o modelo de um israelita que experimenta a essência da Lei, usufruindo todas as bênçãos (intimidade) e disciplinas cabíveis neste relacionamento. Assim, pode-se ver Deus rejeitando Saul ao oferecer sacrifícios antes de ir para a guerra, pois Samuel demorava (ato aparentemente correto ou justificável para o ser humano), mas não condenando Davi, que entrou no tabernáculo e comeu o pão santo da proposição juntamente com seus homens, pois tinham fome (ato aparentemente errado). Deus manifesta, novamente, Seu juízo e Sua misericórdia em cada vida, pois sonda e conhece o coração.
Deve-se entender que todo o pensamento judeu em relação à manifestação de Deus pode ser simplificado da seguinte forma: Deus se revela ao homem pela Palavra e gera no homem uma experiência relacional, que gera uma ação exterior, a obediência. Era dessa forma, então, que a nação de Israel conviveu com o Deus que se revelou poderoso, justo, provedor, libertador. Era o Deus Forte das Batalhas, que lutava pelo povo escolhido. O entendimento de Sua graça e misericórdia tiveram lugar apenas para aqueles que ousaram buscar uma intimidade e relacionamento com Deus, pois Deus sempre falou que de nada valiam sacrifícios e holocaustos se os corações continuassem cheios de maldade, ou ainda, que era melhor obedecer que sacrificar.
Mas, ainda assim, Deus continua intervindo na história para cumprir Sua Palavra. Para voltar a se relacionar com o homem, que sempre continuou pecando e distanciando-se de Deus, Ele envia o Messias Prometido, Seu Filho Jesus, inaugurando um novo momento teológico.
Em Jesus, tem-se a revelação maior de Deus: o Seu amor incondicional, que não está em Deus, mas é Deus, pois “Deus É Amor”, capaz de colocar em um só homem todo o pecado e toda condenação que seria destinada à humanidade. É a revelação da graça, do amor, da misericórdia, da benignidade e tantos outros atributos que são vistos em Jesus. E Ele diz: “Quem vê a Mim, vê o Pai”. Então, este é o mesmo Deus que se manifestou desde o início da criação.
Jesus veio mostrar o Deus que cuida dos enfermos, dos pobres, dos necessitados e dos aflitos. Que manda dar a outra face, caminhar a segunda milha, lavar os pés do próximo, socorrer o necessitado, comer com pecadores, valorizar os excluídos socialmente. Ele veio mostrar que a Lei foi feita para o homem e não o homem foi feito para a Lei. Jesus quebrou paradigmas, violou regras farisaicas, mostrou um Reino interior. Jesus, literalmente, foi um revolucionário, despindo os judeus de toda hipocrisia e mostrando o que tem realmente valor para Deus.
Diante de uma aparente ambigüidade, poder-se-ia perguntar: Como um Deus que manda matar, espalha pragas e doenças, leva o povo cativo, não aceita ser contrariado, pode ser o mesmo Deus que mostra amor, mansidão e graça? A resposta pode parecer não ser simples, mas Deus é o mesmo ontem, hoje e sempre. Ele é imutável. Ele é o “EU SOU”. Os Seus atributos são maneiras humanas de entender e classificar a revelação divina de acordo com o período histórico, cultural e social, mudando apenas como Deus se faz entender pelo homem em cada época e situação.
Como já dito, a partir do Novo Testamento, a reflexão teológica toma um caminho novo. Nos Evangelhos, Deus é visto no meio do povo, o Emanuel. Em Atos, com a descida do Espírito Santo, Deus passou a habitar dentro de cada cristão. É a presença de Deus dentro e a partir de cada um. Deve-se lembrar que, também nesse período, existem os simbolismos, que consiste na forma da religião: a ceia do Senhor e o batismo, como exemplos.
O Livro de Atos também mostra claramente a soberania de Deus para que Seus propósitos sejam cumpridos. Os cristãos são obrigados a saírem de Jerusalém e, perseguidos e cheios do Espírito, passam a cumprir o que Jesus mandara: levar o Evangelho até os confins da terra. Esse momento histórico é também permeado de milagres realizados pelos discípulos, comprovando a veracidade do Deus que pregavam.
Apesar de ser um período da manifestação da graça e do amor de Deus, da revelação de que Jesus levara os pecados e condenação sobre si mesmo, o pecado continua a ser mostrado, agora à luz da Verdade, pois, em Cristo, nossos erros são revelados para conserto. O episódio de Ananias e Safira, que morreram ao mentir para a comunidade cristã e para o Espírito Santo, mostra que Deus não é conivente com o pecado, apesar da graça e de toda longanimidade. Era um momento histórico em que algo precisa ficar bem estabelecido: a imutabilidade, a santidade e a soberania de Deus.
Dessa forma, podemos afirmar que Deus é o mesmo eternamente, mas, ao traçarmos uma linha cronológica, vemos as diversas formas da manifestação de Deus no decorrer da história, que não podem ser dissociadas umas das outras, mesmo para a reflexão teológica. Podemos, no máximo, investigar qual a expressão de Deus num exato momento para compreendermos o que Deus quer revelar ao Seu povo, mas jamais para estudarmos quem ou como Ele é considerando apenas um determinado período histórico.
Rosane Itaborai Moreira
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